Moratórias e isenções/perdões no setor imobiliário

Mas esta conclusão não é feita de modo arbitrário e liga-se umbilicalmente à simples constatação fatual de ser irrecuperável, na maior parte dos contratos, a rentabilidade perdida. O desenvolvimento do setor imobiliário, na vertente da rentabilidade, após a última crise financeira, sustentou-se na restruturação do passivo existente (v.g. projectos em promoção) e em novas formas de endividamento (v.g. locações financeiras), pelo que diferir o pagamento de contrapartidas remuneratórias exigíveis no imediato (rendas, prestações de créditos, etc) por períodos curtos (até, pelo menos, 31 de Dezembro de 2020) alivia a pressão, mas não poderá ser a solução! O ponto de partida na consideração do tema passará sempre pelo artigo 1040.º do CC: “Se, por motivo não atinente à sua pessoa ou à dos seus familiares, o locatário sofrer privação ou diminuição do gozo da coisa locada, haverá lugar a uma redução da renda ou aluguer proporcional ao tempo da privação ou diminuição e à extensão desta, sem prejuízo do disposto na secção anterior”. Ora este artigo tinha ínsita uma lógica de proteção do arrendatário. No entanto, não podemos deixar de sublinhar que este regime concreto só transfere o ônus decorrente da impossibilidade objetiva de acesso ao imóvel (in casu, por motivo de causa de força maior relacionada com a pandemia COVID-19) se a impossibilidade for superior a 1/6 da duração do contrato. Sendo que, até esse período, o arrendatário tem de continuar a pagar a renda mensal mesmo que não tenha o gozo do imóvel. Daí que, o legislador pareça ter instituído um modelo de moratórias e isenções/ perdões no setor imobiliário, sem atender aos critérios legais de distribuição do risco nos contratos ou da sua específica e concreta previsão, através da adoção de uma organização sequencial por níveis (camadas) de intervenção nas relações jurídicas tipificadas (previsão das medidas aplicáveis). Uma primeira “camada” constituída pelo plano de moratórias gerais[1] que acabam por estabelecer condições mais favoráveis e pagamentos diferidos quer no âmbito dos empréstimos bancários, quer no crédito à habitação, quer através de medidas de apoio e incentivo fiscais às cooperativas, micro, pequenas e médias empresas. Uma segunda “camada” estabelecida pela moratória no pagamento de rendas nos contratos de arrendamento urbano - Lei n.º 4-C/2020, de 06.04.2020 e Portaria 91/2020, de 14.04.2020, agora alterada pela Lei n.º 45/2020 de 20.08.2020, que se aplica quer aos contratos de arrendamentos habitacionais e não habitacionais, permitindo-se, neste moldes, a possibilidade de diferimento do pagamento das rendas nos temos ali previstos e que, na última versão, se prolonga até ao prazo intransponível de 31 de dezembro de 2020. Uma terceira camada, que é constituída pelo artigo 10.º, número 1 da versão consolidada da Lei n.º 4-C/2020: com a consagração expressa da extensão do âmbito de proteção que é previsto para os contratos de arrendamento habitacionais e não habitacionais, com as necessárias adaptações, a outras formas contratuais de exploração de imóveis para fins comerciais. E, por último, uma quarta camada constituída pela previsão introduzida pela mais recente alteração propugnada pela Lei 45/2020[2], no seu artigo 10.º, número 2 no sentido de que as disposições ali contidas não se aplicam aos estabelecimentos inseridos em conjuntos comerciais que beneficiem do regime previsto no n.º 5 do artigo 168.º-A da Lei n.º 2/2020, de 31 de março (lei do orçamento)[3], na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, sendo que neste referido dispositivo, aqui importante, nunca se mencionam expressamente quaisquer tipos de contrato. Nesta última camada, estamos perante um verdadeiro perdão forçado e não numa moratória no pagamento, que tem por âmbito, apenas, as situações dos estabelecimentos inseridos em conjuntos comerciais que passem a beneficiar daquela supra referida isenção/ perdão nos termos do número 5 do artigo 168.º-A da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, na redação da Lei n.º 27 -A/2020, de 24 de julho, cuja interpretação não será isenta de dúvidas! Este artigo é claro, nomeadamente no seu número 5, ao estipular que “Nos casos em que sejam aplicáveis formas específicas de contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais, não são devidos quaisquer valores a título de rendas mínimas, até 31 de dezembro de 2020, sendo apenas devido aos proprietários dos centros comerciais o pagamento da componente variável da renda, calculada sobre as vendas realizadas pelo lojista, mantendo-se ainda a responsabilidade, da parte dos lojistas, pelo pagamento de todas as despesas contratualmente acordadas, designadamente as referentes a despesas e encargos comuns.“ Parece então haver o objetivo último do legislador de retirar estas situações específicas de contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais da previsão das moratórias gerais, da aplicabilidade das moratórias específicas aos contratos de arrendamento habitacional e não habitacional e, até, diferenciá-las do conceito de “outras formas contratuais de exploração de imóveis para fins comerciais” previsto no número 1 do artigo 10.º da versão consolidada da Lei n.º 4-C/2020. Concedendo, no fundo, um verdadeiro perdão em que apenas será previsto o pagamento da componente variável da renda, calculada sobre as vendas realizadas pelo lojista, mantendo-se ainda a responsabilidade, da parte dos lojistas, pelo pagamento de todas as despesas contratualmente acordadas, designadamente as referentes a despesas e encargos comuns. Veja-se que este artigo 168.º-A, número 5, foi aditado na totalidade pela Lei n.º 27 A/2020, de 24 de julho que entrou em vigor no dia seguinte à sua publicação (dia 25 de Julho), sendo que inexiste, quanto a esta específica matéria, qualquer norma remissiva de produção de efeitos. Pelo que, no que concerne aos estabelecimentos de comércio e serviços integrados em centros comerciais sempre se poderá questionar de que forma é compatível o modelo de moratória no pagamento de rendas (moratórias gerais; moratórias específicas para os contratos de arrendamento não habitacionais e ainda aplicáveis a outras formas contratuais para exploração de imóveis) com o direito de ao perdão (que o legislador qualifica como isenção de pagamento) de pagamento da parte fixa das rendas devidas (previsto unicamente para os estabelecimentos integrados em centros comerciais). Parece que o artigo 10.º, número 2 aditado pela Lei 45/2020 afasta completamente os centros comerciais do regime de moratórias estabelecidos, promovendo uma aplicabilidade direta do regime de direito a perdão previsto no n.º 5 do artigo 168.º-A. Regime esse que expressamente consigna um perdão em que não são devidos quaisquer valores a título de rendas mínimas, até 31 de dezembro de 2020, sendo apenas responsabilidade dos lojistas a componente variável da renda (aqui entendida como o valor que excede o custo normal do imóvel). Daí que aquele perdão tenha, por um lado, uma espécie de produção de efeito retroativo anterior à entrada em vigor da lei (45/2020) mas concomitantemente projetando esse efeito até à data limite de 31 de dezembro de 2020. Tendo esse artigo sido apenas aditado pela lei 27-A/2020, de 24 de Julho, que entrou em vigor no dia 25 de Julho, poder-se-á defender no limite que, até essa data, os lojistas não estavam obrigados ao pagamento da renda prevista nos respectivos contratos, por não ser aplicável o disposto no artigo 1040.º do CC. O legislador terá pretendido estabelecer um critério de equilíbrio contratual para um período em que a lenta retoma da economia penaliza a atividade dos centros comerciais, consagrando um perdão forçado do pagamento parcial das rendas devidas contratualmente, num período em que os estabelecimentos estão em atividade. Pelo exposto, e depois da análise do referido regime, parece certo que este sistema de isenções/ perdões das rendas fixas nos centros comerciais tem de ser objeto de um especial realce e definição quer quanto ao seu efetivo âmbito quer quanto ao seu período de aplicação. É que para além destas medidas legislativas, e como possível solução para o equilíbrio contratual estabelecido pelo legislador, existe ainda a possibilidade da consignação de “empréstimos em condições especiais”, que, no entanto, não se encontram ainda regulamentados pelo legislador. Aqui com um risco claro: os proprietários sabem o que perdem mas não têm informação concreta sobre quais as compensações a serem concedidas futuramente pelo estado. Estas medidas legislativas, ao separarem o regime dos contratos de arrendamento, do regime de outras formas contratuais de exploração de imóveis e dos estabelecimentos integrados em Centros Comerciais, sem atender aos critérios legais da distribuição do risco nos contratos, provocarão, certamente, grandes dificuldades na aplicação a situações concretas (existem inúmeros modelos contratuais), aumentando a conflitualidade no sector do imobiliário e, consequentemente, a instabilidade no mercado do arrendamento urbano e cedência de utilização de lojas em centros comerciais. [1] Moratória no pagamento das prestações dos empréstimos bancários, nomeadamente do crédito à habitação, que tinha sido assegurada pelo Decreto-Lei n.º 10-J/2020 e que foi agora alterada, pela segunda vez, pelo Decreto-Lei n.º 26/2020); Moratória no pagamento das prestações dos empréstimos bancários, nomeadamente do crédito à habitação, que tinha sido assegurada pelo Decreto-Lei n.º 10-J/2020 e que foi agora alterada, pela segunda vez, pelo Decreto-Lei n.º 26/2020 – com o prazo de vigência da moratória a ser prorrogado de forma genérica até 31 de março de 2021; A Lei n.º 29/2020, que estabelece novas medidas fiscais de apoio às cooperativas, micro, pequenas e médias empresas, com o objetivo de mitigar os efeitos provocados pela pandemia nestas entidades. [2] Para mais desenvolvimentos vide p. 5 da legal note RSA disponível em https://rsa-lp.com/2020/08/28/regime-excepcional-para-o-sector-imobiliario/ [3] Para mais desenvolvimentos vide p. 6 da legal note RSA disponível em https://rsa-lp.com/2020/08/28/regime-excepcional-para-o-sector-imobiliario/

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