Dispõe o n.º 3.º do artigo 27.º do RJUE na parte que releva para este artigo que “a alteração da licença de operação de loteamento não pode ser aprovada se ocorrer oposição escrita dos titulares da maioria da área dos lotes constantes do alvará”.Na interpretação deste normativo para o cálculo da aludida maioria tem vindo a predominar a tese de que para o apuramento desta maioria, não será contabilizada a área do lote pertencente ao requerente da alteração ao loteamento. Haverá aqui, defendem, um conflito de interesses que impõe que o titular do lote em causa não possa votar e contribuir para formar uma maioria, porque é parte interessada na alteração que pretende e, portanto, votará sempre a favor dela, desvirtuando o processo de formação da mencionada maioria.Salvo o muito devido respeito, não aderimos a esta tese.Na nossa ordem jurídica, a questão do conflito de interesses coloca-se quando um sujeito jurídico, titular de um interesse jurídico próprio, mas potencialmente conflituante com o interesse de um terceiro, é também chamado a participar da decisão dessoutro sujeito, podendo, para benefício do seu interesse próprio, prejudicar os interesses do terceiro que de algum modo representa. A defesa dos interesses do terceiro recomendam que do seu processo de decisão seja afastado aquele que simultaneamente prossegue um interesse conflituante.São os casos, por exemplo, do sócio em conflito com a sociedade, dos representantes legais do menor na gestão do património destes, ou do mandatário que realiza por conta e no interesse do mandante um negócio consigo mesmo.Não há nem pode haver qualquer conflito de interesses, em sentido técnico, quando alguém (por exemplo o titular de um lote) defende os seus próprios interesses, porventura, contra os interesses de terceiros (porventura os titulares dos demais lotes). Essa é a situação normal da vida que a ordem jurídica visa regular através da instituição de regras justas e seguras que se substituam à mera força definidora dos interesses numa ordem primitiva e selvagem.Ora, esse é precisamente o caso da alteração de um loteamento. Não encontramos, em rigor, qualquer conflito de interesses (em sentido jurídico) entre os diversos titulares dos lotes. Cada um deles defende o seu próprio interesse pessoal, sem lhe caber a definição do interesse do outro.É neste contexto que interpretamos o artigo 27.º do RJUE: A regra da maioria aí estabelecida é uma simples regra de definição de relações potencialmente divergentes,mas onde, de um ponto de vista estritamente técnico, não há qualquer conflito de interesses.A igual conclusão chegamos quando tentamos perceber se a regra em causa, apesar de inserida no regime jurídico da urbanização e edificação, se deve qualificar como uma regra que visa tutelar a prossecução de um interesse público que recomende a referida interpretação que vem predominando, ou se alternativamente, estamos na esfera das relações entre os titulares dos vários lotes, portanto na esfera das relações de Direito Privado que relevam do domínio dos direitos reais, devendo procurar-se neste âmbito a resposta a esta questão.Tomando como boa a análise do Parecer número 33/2016, da Procuradoria-Geral da República, publicado no Diário da República, 2.ª Série, número 116, de 19 de junho de 2017, uma operação de loteamento é, na sua essência, o seguinte:«A necessidade de os conjuntos de edificações autónomas num mesmo prédio ou em prédios contíguos terem de ser precedidos por uma operação de loteamento e respetiva licença municipal (ou, nos casos previstos na lei, de mera comunicação prévia) deve -se, fundamentalmente, à necessidade de afirmar a precedência da urbanização sobre a edificação, ou seja, garantir que um conjunto de novas edificações autónomas dispõe de infraestruturas adequadas, beneficia de espaços e equipamentos de utilização coletiva próprios, contribui para o bem comum com a cedência de terrenos a favor do domínio público ou do património municipal e assume um programa de edificação nos lotes ao qual se vinculam o promotor, os adquirentes de lotes e o município (…).A licença de loteamento não deve ser qualificada como regulamento, nem como um plano nem como um negócio jurídico1, conquanto o seu conteúdo revele traços normativos, em especial as especificações obrigatoriamente fixadas para a edificação em cada lote, apesar da função de instrumento de gestão territorial que desempenha e não obstante assumir uma natureza jurídica modal, evidenciada nos deveres, ónus, encargos, termos e condições que recaem sobre o loteador.»Duas notas ressaltam desta pertinente contextualização da natureza jurídica do loteamento:A necessidade de uma operação urbanística de loteamento (como, aliás, de qualquer outra) «deve -se, fundamentalmente, à necessidade de afirmar a precedência da urbanização sobre a edificação», isto é, à necessidade de enquadrar e compatibilizar o interesse privado na edificação com o interesse público da urbanização, que prevalece;A licença de loteamento não é um negócio jurídico. Nem entre o Município e o loteador, nem entre os titulares dos lotes.Em cada momento, o conteúdo da coisa “lote” (com os respetivos parâmetros urbanísticos e servido por infraestruturas e equipamentos determinados) é definida pelo ato administrativo que o Alvará de Loteamento titulará, porém, as relações entre os titulares de lotes essas são já relações de Direito Privado e apenas pelo Direito Privado são reguladas. Competindo ao Município, naturalmente, a defesa do interesse público, não lhe cabe a defesa dos interesses dos titulares dos lotes.É inequívoco também que foi propósito do legislador assegurar aos adquirentes de lotes a existência de determinados equipamentos, um específico dimensionamento das áreas verdes, um arranjo paisagístico na proximidade, um conjunto de infraestruturas e equipamentos, etc. Porém, e isto é o que releva, esta preocupação não traduz já a prossecução de nenhum interesse público, nem decorre do princípio da legalidade. Está em causa sim, a proteção de interesses privados (de expectativas jurídicas) entre titulares dos lotes do mesmo loteamento.Apesar de não existir qualquer vínculo jurídico entre o proprietário de cada lote e os arruamentos que o servem, ou as zonas ajardinadas ou equipamentos de que beneficia, o legislador pretendeu que as “soluções” adotadas para a área de um determinado loteamento, fossem tendencialmente estáveis no tempo, mas aceitando a alteração desse statos quo, desde que:1.º - para a salvaguarda do interesse público - a nova solução cumpra com todas as regras urbanísticas que lhe sejam aplicáveis à data da alteração (sem prejuízo do disposto no artigo 60.º do RJUE);2.º - para salvaguarda de expectativas jurídicas (de direito privado) dos titulares de lotes - pelo menos uma determinada percentagem de titulares de lotes (ainda que definidos em função da área dos lotes de cada um) consinta na alteração pretendida – art.º 27.º n.º 3 do RJUE..Neste segundo âmbito, que é o que aqui nos preocupa, os direitos e as expectativas que do alvará de loteamento decorrem para o conjunto dos titulares dos lotes (e não já, para cada um individualmente) são direitos típicos do regime da comunhão.Ora, o artigo 1040.º do Código Civil dispõe expressamente: «As regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão dequaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles»2.Ora, o regime da compropriedade não estabelece qualquer limitação ao direito de voto dos comproprietários com interesses conflituantes entre si. Bem ao invés.Assim e em conclusão, estando no domínio do Direito Privado, e não sendo a situação de eventual conflito ente titulares de lotes subsumível a nenhuma hipótese legal ou princípio geral de direito destinado a prevenir ou a resolver um potencial conflito de interesses, é nas regras dos Direitos Reais que devemos encontrar alguma limitação ao direito de voto previsto no artigo 27.º, número 3, do RJUE, sendo certo que ao Município, enquanto garante único do interesse público, lhe é sempre completamente indiferente o sentido dessa maioria, já que se esta for incompatível com as regras imperativas da urbanização, o pedido de alteração será sempre necessariamente indeferido.É por isto que entendemos que aquela limitação (de voto) não existe nem encontra suporte legal em parte alguma. Pelo contrário, de todo o quadro normativo regulador das relações de comunhão entre titulares de direitos reais (veja-se a título exemplificativo o regime jurídico da Propriedade Horizontal) aponta no sentido da afirmação inequívoca do direito de voto do titular do lote do Requerente da alteração, na formação da maioria deliberativa do artigo 27.º, número 3, do RJUE.