Vencida a situação de incumprimento que marcou o processo de transposição da Diretiva 2014/17/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de fevereiro, relativa aos contratos de crédito aos consumidores para imóveis de habitação, o Governo aprovou e fez publicar o Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23 de junho, que regula a comercialização dos contratos de crédito com garantia hipotecária ou equivalente de todos os imóveis, independentemente de se destinarem ou não à habitação. O regime estabelecido naquele Decreto-Lei inclui também os contratos de locação financeira de bens imóveis para habitação própria permanente, secundária ou para arrendamento.
Excluídos do âmbito de aplicação deste regime estão, entre outros, os contratos de crédito cuja finalidade seja financiar a realização de obras e que não estejam garantidos por hipoteca ou por outro direito sobre coisa imóvel. Estes contratos ficam sujeitos às disposições do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril, relativa a contratos de crédito aos consumidores.
Deveres de informação reforçados através da Ficha de Informação Normalizada Europeia (FINE)
A adoção da Diretiva n.º 2014/17/UE pelos Estados-membros visa «assegurar um nível adequado de tutela dos interesses dos consumidores que celebram crédito hipotecário», promovendo, em simultâneo, «o desenvolvimento de um mercado de crédito mais transparente, eficiente e competitivo dentro do mercado interno». Neste contexto são reforçados os deveres de informação pré-contratual, através da criação da Ficha de Informação Normalizada Europeia (FINE). Trata-se de um formato harmonizado a nível europeu no que respeita aos deveres de prestação de informação pré-contratual e que substitui a Ficha de Informação Normalizada (FIN), atualmente distribuída em Portugal.
Na FINE constará a informação pré-contratual de caráter geral e personalizado, bem como os deveres de assistência ao consumidor. A informação reunida na FINE será disponibilizada ao consumidor, de forma «legível» em «papel ou noutro suporte duradouro». O Decreto-Lei n.º 74-A/2017 prevê, expressamente, que toda a informação deverá ser «completa, verdadeira, atualizada, clara, objetiva e adequada aos conhecimentos do consumidor individualmente considerado».
Entre as disposições de «harmonização imperativa», a Diretiva 2014/17/EU inclui também o cálculo da taxa anual de encargos efetiva global (TAEG). A equação base da TAEG do contrato de crédito traduz a equivalência entre a utilização do crédito, por um lado, e os reembolsos e encargos, por outro, segundo a fórmula matemática fixada no Decreto-Lei n.º 74-A/2017.
Mutuante e consumidor podem sujeitar contrato de crédito a regras especiais
Na negociação do contrato de crédito, o mutuante deve ainda informar o consumidor da possibilidade de sujeitar o contrato, por acordo expresso entre as partes, a regras especiais. Uma admite a constituição de seguro de vida do consumidor e de outros intervenientes no contrato de crédito e seguro sobre o imóvel, em reforço da garantia de hipoteca. Outra prevê que «a venda executiva ou dação em cumprimento do imóvel na sequência de incumprimento do contrato de crédito, pelo mutuário, o exonera integralmente e extingue as respetivas obrigações no âmbito do contrato, independentemente do produto da venda executiva ou do valor atribuído ao imóvel para efeitos da dação em cumprimento ou negócio alternativo».
Período mínimo de reflexão de sete dias antes da celebração do contrato
Dada a importância da transação patente no contrato de crédito hipotecário, o novo regime procura assegurar que os consumidores disponham de um prazo suficiente para compararem propostas, avaliarem as implicações da contratação do crédito e tomarem uma decisão informada. Assim, o Decreto-Lei n.º 74-A/2017 estabelece que «o mutuante permanece vinculado à proposta contratual feita ao consumidor durante um prazo mínimo de 30 dias contados». Acresce a imposição de um período mínimo de reflexão de sete dias, período durante o qual o consumidor não pode aceitar a proposta contratual. Também o fiador beneficia deste período mínimo de reflexão, antes da celebração do contrato, para que possa ponderar as implicações da concessão da fiança.
Mutuantes mais atentos à solvabilidade do consumidor
Antes da celebração do contrato de crédito, o mutuante deverá verificar «a capacidade e propensão [do consumidor] para o cumprimento do contrato de crédito».
De acordo com o Decreto-Lei n.º 74-A/2017, «a avaliação de solvabilidade deve basear-se em informação necessária, suficiente e proporcional sobre os rendimentos e as despesas do consumidor e outras circunstâncias financeiras e económicas que lhe digam respeito». Esta avaliação «não deve basear-se predominantemente no valor do imóvel que excede o montante do crédito nem no pressuposto de que o imóvel se irá valorizar», exceto se a finalidade do contrato de crédito for a construção ou a realização de obras no imóvel. O mutuante deve proceder à consulta das bases de dados de responsabilidades de crédito e, complementarmente, proceder à consulta da lista pública de execuções.
Avaliações independentes e agentes imparciais
A avaliação do imóvel deve ser realizada por perito avaliador independente registado na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). O consumidor pode apresentar ao mutuante uma reclamação escrita relativamente aos resultados e fundamentação da avaliação e requerer uma segunda avaliação. Quando a reavaliação seja por iniciativa do mutuante, não podem ser cobrados encargos ou despesas aos consumidores.
O novo regime determina também que a política de remuneração dos trabalhadores dos bancos envolvidos na concessão de crédito deve evitar conflitos de interesse. Assim, é estabelecido que «a remuneração, incluindo eventuais comissões, não depende, direta ou indiretamente, de qualquer aspeto relacionado com os pedidos de crédito aprovados ou contratos de crédito celebrados, designadamente do seu número ou percentagem mensal ou anual por trabalhador, montantes, tipo, taxa aplicável». O objetivo é «limitar práticas de venda inadequadas» garantindo o cumprimento dos deveres de diligência, neutralidade e lealdade.
Por outro lado, os mutuantes devem assegurar que os seus trabalhadores «possuem e mantêm atualizado um nível adequado de conhecimentos e competências, no que se refere à elaboração, comercialização e celebração dos contratos de crédito» e serviços acessórios.
No plano contencioso, o Decreto-Lei n.º 74-A/2017 prevê a obrigação de disponibilização de meios de resolução extrajudicial de litígios, quer para o crédito hipotecário, quer para o demais crédito aos consumidores, através da adesão dos mutuantes a, pelo menos, duas entidades habilitadas a realizar arbitragens.
De sublinhar que o Decreto-Lei n.º 74-A/2017 opera a transposição parcial da Diretiva 2014/17/UE, do Parlamento e do Conselho, de 4 de fevereiro. «Atentas as especificidades associadas às atividades de intermediação de crédito e de prestação de serviços de consultoria», refere o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 74-A/2017 «optou-se por proceder à transposição das referidas disposições de forma autónoma». A Diretiva 2014/17/UE traduz o primeiro passo na criação de um mercado de crédito hipotecário à escala da União.