Quais as causas da crise na habitação em Portugal? E, mais importante, como podemos ultrapassar as dificuldades vividas, em especial, pelos jovens e classe média?
Em entrevista à Vida Imobiliária, Álvaro Santos, CEO da Agenda Urbana e coautor do livro 'Políticas Locais de Habitação', defende um Pacto de Regime para a Habitação. Um compromisso que permita «criar estabilidade, fiscal e legislativa, para atrair o investimento dos privados», algo que considera «fundamental para o aumento da oferta habitacional». Na sua opinião «só com o esforço público é impossível atingir as necessidades atuais de habitação» e aponta que não basta aumentar a oferta para compra e venda, é necessário dinamizar o mercado de arrendamento a preços acessíveis.
Admite que esta é uma crise «dramática», mas também «paradoxal», afinal «vivemos a maior crise no setor habitacional dos últimos cinquenta anos, mas a verdade é que nunca como agora o nosso país dispôs de tanto dinheiro para investir no setor». Sublinha o papel «essencial» dos municípios na implementação das políticas públicas de habitação e aponta a importância de instrumentos, tais como, o Plano Diretor Municipal (PDM) e as Estratégias Locais de Habitação como base para a solução do problema da habitação.
Nos últimos meses a crise na habitação tem motivado muitas análises. Num esforço de síntese, quais as principais causas das dificuldades em aceder à habitação em Portugal?
A crise habitacional que o nosso País atravessa atualmente é dramática. Existem várias razões para chegarmos ao ponto a que chegamos. Contudo, entendo que são três as razões fundamentais:
- Forte abrandamento do ritmo de crescimento do parque habitacional. Repare-se que, na última década, foram produzidos pouco mais de 168 mil fogos, enquanto que, entre 1991 e 2000, foram produzidos mais de 1.100 mil fogos, e, entre 2001 e 2010, foram produzidos mais de 980 mil fogos;
- Aumento dos preços da habitação muito superior ao rendimento das famílias, nos últimos 8 anos;
- Falta de confiança dos proprietários no mercado de arrendamento, como o comprovam os 723 mil fogos vagos que existem em Portugal (160 mil na Área Metropolitana de Lisboa e 84 mil na Área Metropolitana do Porto).
Analisando em mais detalhe cada um dos pontos aqui assinalados, de que forma pode a oferta de habitação privada ser promovida?
É imperioso e urgente aumentar a oferta de habitação, pública e privada, em Portugal. Mas, é evidente que só com o esforço público é impossível atingir as necessidades atuais de habitação no nosso País.
Temos de recuperar os níveis de produção de cerca de 100 mil fogos/ano, e, para isso, é absolutamente necessário incentivar e criar condições para os promotores e investidores privados voltarem a apostar na construção de novos fogos para o mercado de habitação, em particular, a preços acessíveis.
Fundamentalmente, importa criar um quadro fiscal atrativo e estável e linhas de financiamento compatíveis com o risco assumido. Um exemplo de medida de forte estímulo é a diminuição do IVA da construção de habitação de 23% para 6%, de uma forma generalizada.
Estou profundamente convicto que o aumento da oferta de habitação resultaria, inevitavelmente, numa baixa de preços, tornando a habitação mais acessível a todos os cidadãos. Mas para que tudo isto seja possível, entendo que é necessário estabelecer um quadro político estável e duradouro, por exemplo, para uma período de 10 anos.
O recente veto presidencial ao pacote “Mais Habitação” abriu as portas para um Pacto de Regime para a Habitação, algo que subscrevo inteiramente.
É chegada a hora das divergências ideológicas serem colocadas de lado, principalmente pela maioria parlamentar. O Direito à Habitação, constitucionalmente consagrado desde 1976, merece ser finalmente respeitado e cumprido. É hora das principais forças políticas dialogarem e convergirem em algo que é estrutural para resolver a grave crise habitacional em que Portugal está mergulhado.
No próximo ano, comemora-se o 50º aniversário do Estado de Direito Democrático. Faço votos para que 2024 seja um ano determinante para assegurar o Direito à Habitação.
E do lado do setor público? Como pode o Estado dar o exemplo na promoção de mais habitação pública?
A existência de um parque público habitacional que assegure o acolhimento dos agregados familiares mais carenciados, em quantidade e qualidade suficientes, assim como um contingente habitacional de rendas acessíveis, são dois objetivos que devem estar sempre presentes na elaboração e na concretização das políticas públicas de habitação.
Aliás, a aposta na habitação acessível é fundamental para minimizar as imensas dificuldades que a população portuguesa de rendimentos intermédios está a sentir para aceder a uma habitação digna, em particular os mais jovens.
A verdade é que nunca como agora o nosso País dispôs de tanto dinheiro para investir em Habitação. Repare-se que há neste momento condições financeiras únicas, designadamente as provenientes das verbas do PRR, que incluem um montante financeiro global de 3,2 mil milhões destinados ao setor da habitação.
Importa, pois, unir esforços para ultrapassar as dificuldades que têm vindo a ser registadas (falta de mão-de-obra, custos de produção elevados, excessiva burocracia, entre outros), aproveitando esta oportunidade para resolver um gravíssimo problema que afeta milhares de famílias que, em pleno século XXI, continuam a não ter uma habitação digna para residir.
Mas, o Estado Central deveria começar por dar o exemplo através da mobilização do seu vasto património para fins habitacionais. Mas, infelizmente, só têm revelado uma enorme incompetência e lentidão na criação de habitação acessível, assim como na concretização das metas estabelecidas em diferentes programas e iniciativas propagandeadas.
Por exemplo, a “Nova Geração de Políticas de Habitação” estabeleceu como desígnio aumentar o parque habitacional público de 2% para 5%. Mas, a verdade é que nos últimos 50 anos, o Estado só foi capaz de construir 110 mil fogos. A este ritmo, demoraríamos 75 anos a alcançar esse objetivo.
O mercado de arrendamento em Portugal nunca foi tão forte como o vemos em outros países e parece continuar muito frágil apesar das sucessivas alterações. Como podemos dinamizar o mercado de arrendamento e a preços acessíveis?
É preciso recuperar a confiança do mercado e isso só se consegue com estabilidade fiscal e legislativa, através de um Pacto de Regime para a Habitação, com programas e medidas de curto e médio-prazo, mas imunes a alterações dos cenários políticos.
Os investidores privados só arriscam se lhes foram dadas garantias de celeridade do processo de licenciamento e de estabilidade fiscal e legislativa. O seu financiamento deveria ser apoiado, por exemplo, com crédito bonificado, embora condicionado à habitação acessível.
Os pequenos proprietários, muitos dos quais de fogos vagos ou devolutos (existem 723 mil figos vagos em todo o País), precisam de ser incentivados a disponibilizar as suas habitações, sem ameaças de ações coercivas, mas por exemplo, com a criação de uma linha de financiamento, com crédito bonificado, para poderem realizar as obras necessárias para a sua imediata disponibilização.
A diminuição da taxa de tributação em sede de IRS aplicada ao arrendamento ou a isenção de Imposto de Selo nos contratos de arrendamento são duas medidas que poderiam representar um forte incentivo para que os proprietários de imóveis passem a considerar o arrendamento uma boa alternativa.
Quais as oportunidades potenciadas pelo financiamento à habitação (PRR)? E como se perspetiva o horizonte para além de 2026?
Além de dramática, a crise habitacional é, também, paradoxal. Porque vivemos a maior crise no setor habitacional dos últimos cinquenta anos, mas a verdade é que nunca como agora o nosso país dispôs de tanto dinheiro para investir no setor.
Atualmente, há condições financeiras únicas, provenientes do PRR, que incluem um montante financeiro global de 3,2 mil milhões destinados ao setor da habitação. Ou seja, temos milhões para habitação, mas parece que não há tempo para o investir até 2026. Porque o PRR assim o impõe e, pelos vistos, não tínhamos feito convenientemente o trabalho de casa. Mas, não nos iludamos com os milhões do PRR. Os problemas habitacionais em Portugal não se resolverão completamente no horizonte dos próximos 3 anos. Por isso, é fundamental pensar para além de 2026.
No seu mais recente livro – "Políticas Locais de Habitação" – defende que os Municípios têm um papel essencial na implementação das políticas públicas de habitação. Os Municípios estão mobilizados para prover habitação? Que medidas podem potenciar a atuação dos Municípios?
Os municípios têm um contacto direto e privilegiado com a população, sendo os autarcas e os técnicos municipais quem melhor conhece o território e as suas necessidades, pelo que são chamados a desempenhar um papel crucial na implementação de políticas de habitação que contribuam para o almejado bem-estar da população.
Aos municípios cumpre planear e executar as respetivas políticas municipais de habitação, identificando as carências e disfunções do parque habitacional, bem como as suas dinâmicas evolutivas, tendo como objetivo encontrar as respostas mais adequadas para resolver os problemas e potenciar as oportunidades de desenvolvimento no quadro das políticas habitacionais e em articulação com as restantes políticas locais. Também no universo autárquico, as Juntas de Freguesia, entidades de proximidade ao mundo real, são cruciais na deteção de problemas e na procura de soluções.
Mas, se por um lado, é indiscutível o papel de fundamental relevância que os municípios podem desenvolver em prol da provisão de habitação para as suas populações, a verdade é que, com exceção dos maiores municípios ou daqueles que estão localizados nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto, ainda existe uma generalizada escassez de recursos, humanos e financeiros, afetos a este domínio.
Na realidade, em muitos municípios portugueses, o pelouro da Habitação ou não existe ou está integrado com a Ação Social, assumindo um papel secundário na agenda de técnicos e gestores públicos, o que resulta numa menor atenção dedicada aos problemas prementes e, cada vez mais, atuais da falta de habitação para uma boa parte da população portuguesa.
Estamos em crer que esta situação não poderá, nem deverá, manter-se. Pelo contrário. O que se preconiza é uma aposta estratégica na Habitação ao nível local. Para isso, considera-se imperioso, desde logo, a criação e autonomia do pelouro da Habitação, nos municípios onde ainda não exista.
A liderança destes processos é fundamental para assegurar as funções de coordenação de nível superior. A existência de um Vereador dedicado ao pelouro da Habitação é, pois, absolutamente crítico, por exemplo, para promover a articulação das ações a desenvolver no quadro da Estratégia Local de Habitação com outras ações de desenvolvimento social e de melhoria das condições urbanísticas, ou ainda para garantir uma boa articulação com o IHRU – Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, enquanto entidade responsável por intervenções no quadro nacional e regional, assim como com outras entidades responsáveis por assegurar o financiamento no âmbito do sector da Habitação.
Naturalmente que a criação, ou a existência, do pelouro da Habitação implica um reforço dos recursos, financeiros e humanos, ao nível da gestão técnica e operacional, de modo que os múltiplos desafios possam ter uma resposta célere e eficaz.
Os recursos humanos afetos à gestão técnica e operacional deverão assegurar a implementação das ações preconizadas pelos órgãos de decisão municipal, assumindo um papel fundamental na informação, a todo o momento, e no apoio à tomada de decisão política para a satisfação de compromissos de gestão e monitorização. A este nível operacional seria exigida a implementação das orientações no nível superior, assim como a gestão corrente e o relacionamento com a população e com todos os agentes locais que interajam neste domínio da Habitação.
Por outro lado, verter a estratégia municipal de habitação nas estratégias de planeamento territorial, o que deve ser feito no quadro das Cartas Municipais de Habitação em articulação com os Planos Diretores Municipais, é crucial para o bom equilíbrio e desenvolvimento espacial municipal e rentabilização de infraestruturas e equipamentos, e até, regulação do valor fundiário, e essa matéria somente os municípios a podem decidir e desenvolver.
Os PDM e as Estratégias Locais de Habitação são a base para a solução do problema da habitação?
A Lei de Bases da Habitação incentiva os municípios a criarem as suas Cartas Municipais de Habitação, enquanto instrumentos municipais de planeamento e ordenamento territorial em matéria de habitação.
Impõe-se assumir a integração do setor da Habitação no planeamento territorial municipal, em termos de reabilitação urbana ou em termos de programação do uso do solo e ponderar quais os caminhos estratégicos a seguir.
Os PDM e as Estratégias Locais de Habitação são a base desse processo, sendo os PDM também o recetáculo das orientações a definir. Mas há que ser sistemático e claro em termos das opções, da programação e dos atores. Conhecer os constrangimentos e prever como os ultrapassar. Concertar política(s) com território, estipular como e quando fazer, delimitar territórios de pressão e territórios decadentes ou em decadência, zonas a alavancar e zonas a condicionar.
Para tal as Cartas Municipais de Habitação são, na atualidade, a ferramenta a utilizar. Nelas, perspetiva-se a intervenção pública/municipal de provisão de habitação de cariz mais social ou destinada a arrendamento acessível, avaliando as necessidades, definindo um perfil e refletindo sobre os melhores locais de promoção, assim garantindo sustentabilidade para uma intervenção destinada a quem mais dificuldades tem, e que cabe ao setor público tratar.
Por outro lado, programam-se áreas e incentivos para a promoção da oferta de habitação por parte do proprietários e promotores privados, regulando essa promoção e dando sinais de territórios de preferência para o fim em vista, seja destinado à alienação seja destinado a arrendamento privado, apontando ainda o segmento mais ajustado a cada espaço territorial. Faz-se assim, planeamento do uso e ocupação do solo, e criam-se os necessários incentivos para que essas diretrizes sejam eficientes e eficazes.
De referir ainda que, os municípios com Carta Municipal de Habitação aprovada vão ter prioridade no acesso a financiamento público destinado à habitação, reabilitação urbana e integração de comunidades desfavorecidas, no âmbito do Portugal 2030.