Habitação

MERCADO RESIDENCIAL ENTRA NUM NOVO CICLO

Ainda mais profissionalizado e exigente, e onde, apesar da continuada escassez de oferta, já não basta lançar um projeto para que este se venda “a correr”; o mercado residencial português acaba de entrar numa nova fase do ciclo.

Susana Correia 04 Julho 2024

No mais recente Pequeno-Almoço Conferência, realizado pela Vida Imobiliária em colaboração com a NOS, em Lisboa, no dia 9 de maio, diversos líderes do setor imobiliário juntaram-se à mesma mesa para debater o estado atual do mercado da habitação.

No final do encontro, a conclusão era evidente: apesar de a oferta produzida continuar a ser insuficiente para responder à procura, a subida das taxas de juro e dos custos de construção vieram colocar novos desafios ao setor, e, após vários anos de subidas continuadas de preços, hoje em dia desengane-se quem achar que basta lançar um novo projeto para que este se venda num ápice e a preços sempre mais altos…

«Vimos de um ciclo fantástico, de forte dinâmica e crescimento de preços, mas que foi travado pelo aumento das taxas de juro e do clima adverso dos últimos dois anos. Tudo isto condicionou a evolução do mercado em termos de procura e de transações, e a partir de meados de 2022, mas de forma mais acentuada em 2023, houve uma quebra significativa, com muitos compradores a ficarem de fora do mercado – cerca de 20%. Mas, agora estamos num novo momento de viragem, e neste início de 2024 a nota é de estabilização, primeiro, e de recuperação no número de transações, que estimamos que aumentem 4,4% no 1º trimestre», afirmou Ricardo Guimarães, diretor da Confidencial Imobiliário. Ou seja, no presente «há uma nova mudança de ciclo, pois sentimos que um maior apetite dos compradores e da procura, em geral».

«Este reequilíbrio não será, contudo, imediato», até porque «a promoção imobiliária travou a fundo em 2023», e neste setor «a procura é mais rápida a recuperar que a oferta», frisou Ricardo Guimarães. E, os dados da Ci são evidentes deste movimento de retração: «enquanto nos anos anteriores contabilizávamos uma média de lançamentos de 60 de novos edifícios residenciais por trimestre, no ano passado este indicador desceu para uma média de 15,16 edifícios por trimestre», adiantou o diretor, convicto que «a oferta responderá mais tardiamente, quando sentir que efetivamente a procura já recuperou alguma confiança».

Em todo o caso, diz, os números dos últimos anos são evidentes. «De um total de 150.000 apartamentos em pipeline [com pré-certificado energético] nos últimos cinco anos, apenas 90.000 foram licenciados e, destes, só cerca de 50.000 foram concluídos; sendo que nesse período só as transações de apartamentos foram 55.000. Ou seja, apesar dos receios se haveria ou não condições para lançar projetos, quem o fez não se arrependeu pois, em termos agregados, praticamente todo o produto que saiu para o mercado nesse período foi vendido», remata o diretor da Ci.

Para a Head of Residential da JLL, Patrícia Barão, «com a subida abrupta das taxas de juro, que passaram de negativas para 4% num curto espaço de tempo, era inevitável que o mercado não se ressentisse; e, portanto, é normal a quebra nas vendas que assistimos no ano passado». Não obstante, «quando se diz que tudo se vende, hoje não é bem assim», adverte. «Viemos de um paradigma onde efetivamente isso era verdade, mas agora estamos numa nova fase de mercado em que apesar de a oferta ser ainda mais limitada, do produto que chega ao mercado aquele que se vende bem é o que está efetivamente bem estruturado, isto é, que exibe um valor final justo para o que se está a vender», explica.

Ricardo Guimarães, Diretor da Confidencial Imobiliário
Ricardo Guimarães, Diretor da Confidencial Imobiliário
Compradores e promotores fazem contas diferentes

Portanto, em primeiro lugar é preciso ter presente «o comprador não faz a mesma conta que promotor, em termos de preço por metro quadrado, pelo contrário! Tem, sim, um budget global e vai ver o que pode comprar com esse valor na zona onde gostaria de estar», lembra Patrícia Barão, notando que «quando alguns empreendimentos estão demasiado tempo em comercialização e, ainda assim, restam unidades por vender, o mais provável é que os valores praticados não estejam ajustados relativamente à realidade atual daquela localização e segmento». Mas, a seu ver «os promotores estão hoje muito mais sensíveis à necessidade de ajustamento de preços e percebem que têm de estar alinhados com a capacidade do seu público-alvo, investindo muito mais que antes em trabalho prévio de estudo e planeamento com os consultores. Em resultado, embora ainda sejam escassos, não há dúvidas que a maioria dos projetos lançados são, em geral, muito bons e muito mais afinados em termos de posicionamento, alinhando-se com as necessidades do mercado local; o que mostra que também que há uma maior profissionalização dos promotores».

Por tudo isto, Patrícia Barão não tem dúvidas que «se estivéssemos a produzir o nível de unidades que o mercado precisa, teríamos níveis de transações alinhados com os da última década».

«A encomenda de habitação profissionalizou-se imenso na última década»

Na experiência do arquiteto Miguel Saraiva, fundador e sócio da Saraiva + Associados, «a encomenda de habitação profissionalizou-se imenso nos últimos dez anos. Passou de ser liderada pelo sr. Construtor “Américo” para ser liderada pelo senhor fundo», diz, afirmando que «hoje um promotor imobiliário sabe muito melhor o que quer fazer, comparativamente ao que acontecia há alguns anos».

Ainda assim, o arquiteto também tem notado algum arrefecimento do lado da oferta nos últimos meses, «sobretudo desde a publicação do novo decreto 10/2024, do licenciamento», uma vez que «na maioria das câmaras do primeiro anel da Área Metropolitana de Lisboa está hoje a licenciar-se 25% do que se licenciava há seis meses. E, onde hoje entram 100 pedidos de licenciamento por mês, entravam há pouco tempo 100 projetos por semana».

Ainda que «não as consiga perceber na totalidade», o arquiteto não tem dúvidas que uma das principais razões na base desta travagem a fundo «é a subida da taxa de juro, cujo impacto não se reflete de forma tão imediata na oferta como na procura». Em segundo lugar, Miguel Saraiva identifica o preço dos terrenos, «que tem de sofrer um grande ajuste, pois quando atingimos valores patrimoniais de 50% em relação à operação toda, isso é demasiado! Por isso, é preciso que o Estado aja de forma muito mais agressiva a nível fiscal para disponibilizar mais terrenos urbanos, não apenas públicos, como privados», defende. «Em terceiro lugar, temos ainda o impacto das alterações ao licenciamento, que nos obrigam a alterar a forma como trabalhávamos até aqui. Com o Simplex, as responsabilidades são hoje muito mais visíveis, porque deixámos de ter a camada da Câmara a fiscalizar cerca de 50% do mercado, e, portanto, nós os profissionais temos de ser ainda muito mais rigorosos, de forma a evitar erros, e isso tem um impacto natural que não se consegue medir facilmente».

Custos de construção «não vão baixar»!

A questão dos custos de construção é outro dos grandes travões ao lançamento de mais oferta e na base deste abrandamento da promoção, acrescenta o administrador da Libertas, Pascal Gonçalves. «Quando se vai pedir preços de construção, muitos surpreendem-se e ficam preocupados com a viabilidade económica dos seus projetos. Pois, nesta fase de 2024, devido sobretudo a questões relacionadas com a subida das taxas de juro, o que acontece é que muitas empresas se vêm obrigadas a ter de reequacionar como otimizar aquele empreendimento em termos de construção, para baixar custos». Convicto que «o custo de construção não vai baixar», este especialista dá como exemplo o empreendimento que a Libertas está a desenvolver em Benfica, «cujo custo de construção é, neste momento, de 3.759€/m², sem IVA e sem margem, pois temos uma construtora própria», chamando a atenção para a necessidade de um choque fiscal.

Já para David Carreira, Country-Manager da Thomas & Piron em Portugal, até aqui a morosidade do licenciamento e toda a carga burocrática associada tem sido, por ventura, o maior desafio que um promotor tem de conseguir ultrapassar, chegando mesmo a ameaçar a viabilidade dos investimentos. «Demorámos seis anos para conseguir fazer o nosso primeiro projeto em Lisboa, três dos quais foram perdidos por burocracia. Já em Gaia, estaremos a falar de mais de dez anos para conseguir fazer 210 apartamentos, pois comprámos um terreno em 2019 e volvidos cinco anos ainda não começámos a fazer a obra, sendo que ainda precisamos de contar com mais outros cinco ou seis anos para desenvolver toda a oferta. Ora, demorar uma década para fazer um projeto desta envergadura não é viável», lamenta, embora reconheça que esta não é uma situação exclusiva do nosso país. «Lá fora a situação não é assim tão diferente do que acontece por cá, em termos de morosidade burocrática, pelo menos na Bélgica».

David Carreira, Country Manager da Thomas & Piron
David Carreira, Country Manager da Thomas & Piron
Construímos menos e com pior qualidade

Concordando com Pascal Gonçalves, David Carreira também não acredita que os custos de construção vão baixar. «O que mais me preocupa é que deixámos de ter em Portugal a capacidade instalada de construção que tínhamos há alguns anos. E também não estamos a fazer muito quanto às soluções industrializadas».

Para estes especialistas, a industrialização da construção também parece ainda estar longe de ser uma solução para reduzir os custos de desenvolvimento, ainda que lhes reconheçam outras vantagens, sobretudo ao nível da otimização de projetos e, claro, de reforço da capacidade construtiva. Ainda assim, tanto a Thomas & Piron como a Libertas ainda não estão a recorrer à industrialização na construção dos seus projetos, embora estejam a olhar para esta com cada vez mais atenção.

Lamentando a falta de «know-how técnico para a desenvolver», o fundador da Saraiva + Associados admite que «mesmo nós, os projetistas, também não estamos habituados a desenhar empreendimentos vocacionados para este tipo de soluções». Contudo, reconhece, «esta industrialização é muito importante na lógica do investimento. Permite otimizar e estandardizar as obras, o que, por exemplo, traz bastantes vantagens ao nível do serviço de pós-venda, que é uma das componentes da operação imobiliária que é bastante relevante, representando um custo que, embora diluído ao longo dos anos, pode representar 4% a 5% do valor total da nossa promoção».

Fazendo um diagnóstico ao estado atual do mercado, Miguel Saraiva é perentório: «o setor da construção está muito doente em Portugal. Hoje, construímos menos e com pior qualidade».

Não é possível reduzir custos sem a intervenção do Estado

Ao longo da sessão ficou também claro que não será possível reduzir custos – e assim fomentar a oferta, tornando-a mais acessível - sem a intervenção do Estado, direta e indiretamente. Para Pascal Gonçalves, o SIMPLEX é um bom exemplo, pois «embora não de forma imediata, irá resultar num aumento da oferta concluída dentro de alguns anos. Pelo menos é o que acredito!». Da mesma forma, continua, «em 2024, há projetos suburbanos que não vão arrancar devido aos custos de construção, dos quais o IVA faz parte. Portanto, para dinamizar a construção de habitação em algumas zonas do país, sobretudo naquelas onde os rendimentos são mais baixos, seria muito importante a redução do IVA para 6%»; uma medida que, além disso, «permitirá viabilizar algumas urbanizações e construções periféricas, como por exemplo, em Almada, Amadora e Seixal, que são municípios onde as taxas de construção são muito altas, quase ao nível de Lisboa».

«Obviamente que tudo o que é construção nova tem um impacto muito relevante na totalidade do mercado, mas isto é tudo muito relativo. Nos últimos anos a construção nova representa apenas 15% do que é transacionado no mercado e, em valor representará cerca de 18% do volume total. Sem esquecer que muitos dos imóveis novos que se transacionam são também resultado de uma cadência de transações de usados. Portanto, não vamos pensar que o que se passa no segmento de novos reflete toda a realidade do mercado», começa por realçar o presidente da APEMIP, Paulo Caiado.

Posto isto, «não me parece que essa redução do IVA na construção vá refletir-se numa redução significativa dos preços de venda nos próximos anos», ainda que «tudo o que envolva algum alívio fiscal irá sempre repercutir-se em termos positivos para a sociedade». Em todo o caso, admite, «esta é uma demonstração que não é possível reduzir os custos de construção sem a intervenção do Estado».

«A questão da fiscalidade integrada é muito importante», advoga Miguel Saraiva, lembrando como a redução do IVA para 6% na reabilitação «focou o mercado numa área que tem um risco muito superior, além que em termos sociológicos também se refletiu numa mudança do tecido das cidades».

Mercado residencial deve ser pensado em três dimensões

Na visão de Paulo Caiado, «é preciso assumir-se com frontalidade que o mercado residencial deve ter três dimensões distintas: o mercado livre, que corresponde à sua quase totalidade, e que é aquele que precisa de previsibilidade e estabilidade fiscal e legislativa; depois temos a habitação social pura e, por último, a habitação a custos controlados. Embora nestes dois últimos casos estejamos sempre a falar de segmentos mais pequenos, creio que seria importante assumi-los, para deixar o mercado livre e com boas práticas, a desenvolver-se naturalmente».

Uma visão alinhada com a do arquiteto Miguel Saraiva, para quem «a questão da intervenção do Estado no mercado, com a habitação acessível e etc também é importante para regular o acesso de todas as franjas da população à habitação». Conceptualmente, diz, «o Estado existe não para ter o domínio da nossa vida, mas para regular, e essa regulação passa também por introduzir mais produto que chegue a mais segmentos».

Habitação acessível continua na mira da Libertas

Apesar de todos estes desafios, a habitação acessível e a custos controlados continua a ser um segmento na mira da Libertas. «Estamos disponíveis para vir a fazer este tipo de produto, pois se queremos ter um papel e fazer parte da solução de um problema que afeta todo o país, então temos de estar disponíveis para desenvolver também habitação social e a custos controlados», afirma Pascal Gonçalves, admitindo que o facto de a empresa ter a sua própria construtora é um fator de peso nesta decisão. De qualquer modo, diz, «o mercado deve preparar-se para fazer isso, tal como já acontece noutros países. Basta lembrar que em França, para se fazer habitação, cerca de 20% deve ser sempre destinada ao segmento social ou acessível».

«Vamos fazer isso em Loulé, onde temos terreno num loteamento que há 20 anos foi erradamente classificado como industrial, e que vamos agora passar para uso residencial, para desenvolver um projeto que terá aproximadamente 60% da área inicialmente prevista para a construção de armazéns, sendo que dessa área, uma fatia de 30% será para habitação a custos controlados».

Daniel Beato, Administrador da NOS
NOS quer «ajudar os promotores a criar valor na operação imobiliária»

Lembrando que «hoje em dia a tecnologia e as telecomunicações têm um papel cada vez mais central na habitação», o administrador da NOS, Daniel Beato lembrou os presentes que «numa altura em que os custos não param de aumentar, a tecnologia tem um papel fundamental para otimizar as operações de um investimento, com benefícios a longo prazo, a vinte, trinta ou quarenta anos», permitindo, entre outros, «reduzir custos associados ao financiamento e à propriedade de um imóvel, tanto através da redução dos custos energéticos como na operação a longo prazo». Como tal, deixou o repto: «podemos ser parceiros dos promotores imobiliários, pois queremos ajudá-los a criar valor nos seus projetos e na sua operação!».

Não perca também:
Foto Tiago Eiró
Reabilitação como resposta à falta de oferta em habitação

Em Portugal, deparámo-nos nos últimos anos com uma crise habitacional, no sentido em que existe uma escassez significativa de casas, sobretudo que sejam acessíveis para a classe média e média baixa. Para solucionar este problema, é crucial intervir em diversos segmentos, levando em conta os níveis de imigração e as necessidades específicas dos estudantes universitários, bem como das famílias monoparentais, que geralmente enfrentam restrições orçamentais mais significativas quando se trata de pagar rendas ou adquirir habitação própria.

Continuar a ler


Tiago Eiró
Diretor Geral da Eastbanc em Portugal

Renata Queiroz
Quais os desafios da nova habitação para o mercado nacional?

Os desafios da nova habitação são diversos e complexos. Continuar a ler

Renata Queirós

JPS GROUP, Diretora Comercial, Investimento e Marketing /Adjunta Administração | WIRE, Sócia