Uma discussão com base no powerpoint

No final da conferência de imprensa, foi anunciado que o programa “Mais Habitação” seria objeto de uma ampla discussão pública, na qual poderiam participar todos os interessados e agentes do mercado imobiliário, tendo o programa sido disponibilizado na plataforma, em teoria de forma mais detalhada, sujeitando-o a a comentários até ao dia 10 de março.Antes de nos debruçarmos um pouco mais sobre o mérito ou o demérito das medidas propostas para fazer face ao clamor social por “mais habitação”, não podemos deixar de registar a forma extremamente incipiente em como estas medidas foram apresentadas e discutidas.Com efeito, repare-se que até à data, no âmbito do programa em discussão, não foram ainda concretizadas quaisquer medidas, nem qualquer das mesmas foi apresentada de acordo com a ciência legistica (i.e. em formato legislativo), tendo até agora tudo ficado limitado, apenas, a uma mera reprodução de ideias base, muito gerais e abstratas, no âmbito de uma conferência de imprensa onde nada se concretizou e na qual foram dados exemplos muito vagos de como poderão vir a ser desenhadas e aplicadas essas potenciais novas medidas, que à data tudo menos claras.Ora, esta forma de requerer a “participação” (ou reação) de terceiros às putativas medidas que foram genericamente apresentadas, obriga todos os interessados e agentes ter que a fazer uma prova de adivinhação, para tentar antecipar ou imaginar quais serão as medidas e normas legislativas que poderão (ou não) vir a ser redigidas.A apresentação de um diploma que não existe, obriga os interessados a ter agora a ter que antecipar todos os cenários possíveis e a conjeturar, durante quase um mês, quais são as possíveis soluções legais que virão a ser implementadas, num imenso exercício de futurologia.Se a discussão é sempre saudável, uma discussão que assenta apenas no desconhecimento é uma discussão sempre vazia, errónea e de pouca utilidade. E é assim inútil e despropositado falar, nesta fase, em constitucionalidade ou inconstitucionalidade de normas que, em bom rigor, ainda não existem.Também nos últimos dias, temos assistido a uma profusão de entrevistas, de todos os quadrantes, às quais se vão acrescentando elementos ao que se encontra sumarizado no powerpoint que foi partilhado por todos em jeito de premonição do que aí vem, quase como se já fossem letra de lei, mas que vão nalguns casos muito para além daquilo que está exposto no powerpoint escrito com letras garrafais e com muito pouco conteúdo. Veja-se, pro exemplo, o caso dos contratos de arrendamento que ainda não transitaram para o Novo Regime do Arrendamento Urbano e que ficámos depois a saber, através de uma das muitas entrevistas dadas sobre o powerpoint, que poderão vir a ficar congelados de forma definitiva.Quanto às medidas em concreto, várias causaram um grande clamor e celeuma social, sejam elas o arrendamento compulsivo, o fim da concessão de licenças para o alojamento local, o limite ao aumento de rendas em novos contratos de arrendamento celebrados na sequência do término de anteriores contratos de arrendamento, entre outras medidas de duvidosa exequibilidade prática, nomeadamente o “Estado arrenda para subarrendar”, programa esse que já foi aplicado em Lisboa e que teve uma taxa de insucesso brutal, mas que a Administração Central pretende e acredita agora ser possível implementar a nível nacional.Tudo somado, o programa está conforme com o que o Governo apregoou, é um conjunto de medidas micro e que, para já, parece ficar muito aquém do que será necessário fazer para resolver seriamente o problema da habitação em Portugal.A nosso ver, tudo está sobretudo dependente da criação de mecanismos que aumentem drasticamente a capacidade de estimular a construção e oferta de novas habitações, o que implicará impulsionar e promover medidas legais ou fiscais, eventualmente temporárias, para agilizar nos próximos 5 anos a construção e reabilitação de mais imóveis, para multiplicar por dez o número de habitações que estão a ser colocadas no mercado.Paralelamente, é necessário reabilitar e reconstruir e aproveitar o enorme parque público de imóveis que existem para, em parte deles, os tornar aptos para habitação; reduzir temporariamente impostos a quem coloque casas no mercado do arrendamento; reduzir para 6% ou menos o IVA na construção de novas habitações em zonas de maior procura ou necessidade; isentar temporariamente de IMT ou IRC, quem construa para arrendar ou para alojar estudantes, entre outras medidas que representem verdadeiros incentivos ao aumento da oferta de imoveis habitacionais para comprar ou arrendar.A forma de apresentação do programa Mais Habitação revela, mais uma vez, que o conteúdo prevalece sempre sobre a forma. E, em bom rigor, quando o conteúdo do que foi apresentado é espumoso e aéreo, a forma ressente-se de imediato e acaba por gerar dúvidas insanáveis e incertezas generalizadas.O silêncio deveria agora imperar, não como forma de protesto, mas apenas porque o assunto da habitação é sério, sendo certo que a regras e procedimentos que nos regulam a todos são elementos essenciais em democracia, que não se compaginam com uma discussão pública com base num powerpoint.

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