1,2,3 rebenta a bolha (não se assustem, garanto que é só mais um texto sobre o mercado imobiliário)

Rio-me instintivamente. Existem poucas coisas tão deliciosas como apanhar estes fragmentos da boa alma portuguesa, entre pequenas pausas do pensativo café (para efeitos de construção cénica e poética, melhor se enquadrava o pensativo cigarro, mas foi hábito que não quis e que não me quis).Ainda que profissionalmente me veja embrenhado neste mercado imobiliário, a constante azáfama daquele último prazo que é para amanhã, acaba por nos dessensibilizar completamente à loucura circundante. Somos educados na perspetiva da compra de um imóvel ser sempre um investimento seguro, e, de facto, as rentabilidades associadas à colocação no mercado de arrendamento fazem com que este ainda seja uma forma programada de muitas famílias planificarem a gestão do seu investimento/património. Assiste-se, hoje, a um aumento inusitado e galopante dos preços dos imóveis, potenciado por uma panóplia de fatores: de facto, vistos gold, facilidades de investimento e benefícios fiscais para os residentes não habituais, aliados à globalização turística de Lisboa, fazem com que exista uma procura desenfreada nos polos centrais da cidade. Mas este movimento começa também a transitar para outras cidades portuguesas onde se começa a assistir à consequente subida dos preços dos imóveis.Daí que do turismo habitual de Lisboa, naif, circulando afoitamente no elétrico 28, e que enfeita e acabava por colorir a cidade das sete colinas, evoluímos presentemente para um turismo de investimento, mais consciente, que transforma o antigo turista em investidor. E é este investidor (chinês, francês, inglês, holandês), figura suprema do poder de compra de uma Europa (ainda) unida, que é utilizado, de boca em boca, para justificar aqueles valores. “Não quer o apartamento? Acha o valor exagerado? Mas ainda ontem se vendeu um apartamento igual este por mais uns bons milhares de euros…” É melhor comprar, já, sem olhar para trás. Estará Lisboa in e as pessoas out?O que me parece essencial refletir é saber até que ponto é que esta procura e aumento do investimento estrangeiro tem, de forma correlata, um crescimento sustentado e preparado do mercado imobiliário. Um pouco por todo o coração urbano da cidade existem movimentos visíveis de recuperação e revitalização de antigos imóveis. Ultrapassando as questões óbvias de ordenamento do território, de enquadramento legal e de qualidade dessas reformas, parece-me que existe, aqui, um novo subfenómeno potenciado pela inflação dos próprios preços. É que, ponto novo, este aumento pouco abalizado do preço dos imóveis (não digo preço referência porque este, simplesmente, deixou de existir) fez com que os investidores começassem a comprar cada vez mais casas com a esperança que estas acabem por valorizar ou, pelo menos, beneficiar desta corrente de inflação, com a procura de ganhos imediatos. E é este all-in especulativo, que cria um efeito dominó que tem ramificações perversas.De facto, o panorama assenta agora numa mescla não recomendável de várias situações que acabam por não permitir diferenciar a qualidade dos diferentes produtos. Temos as zonas prime da cidade com preços (ainda mais) exorbitantes que num movimento centrífugo acabam por contaminar os outros segmentos e tipologias dos perímetros médios da cidade. Mas, qual onda disseminadora, a classe média, alavancada e dependente dos créditos e financiamentos bancários, acaba por se ver empurrada para as zonas limítrofes das cidades numa luta constante de consideração de preço por m2 versus qualidade de construção, uma vez que obviamente não tem capacidade para se manter, confortavelmente, naquele range de preços. Se o mercado de luxo, e se as ofertas de revitalização desses prédios antigos constituem agora a moda do investimento, começa a surgir este novo nicho que se baseia em oferecer alternativas de qualidade àqueles refúgios impostos e limítrofes da classe média.Não sei se estaremos, ou não, perante uma bolha imobiliária prestes a explodir. Desde a crise do subprime que a utilização daquela expressão se banalizou dificultando a correta caracterização das situações em que é utilizada. Ouço, também, que esta é uma altura única para investir. Será? Vejo a complexificação e atrasos na renovação dos vistos gold, vejo o Tribunal da Relação de Lisboa a fortificar os poderes das assembleias de condóminos perante as frações destinadas a alojamento local (e este tema daria, por si só, um outro artigo), denoto os crescentes limites das plataformas tipo Airbnb, e penso, sinceramente, que o el dorado prometido começa, também, a dar notas de alguma fragilidade.Não quero parecer o costumado Português que se espanta com a nova peliça do João da Ega. Nunca Lisboa esteve tão no mapa, esteve tão no mundo, esteve tão no palco do turismo internacional, e isso, obviamente, tem repercussões positivas para todos nós. É óptimo. Mas, simultaneamente, nunca Lisboa me pareceu, também, menos cidade. Plena de turistas, plena de movimento, plena de agitação. Mas, menos Lisboa. Com milhares de alojamentos locais, turistas a investir (tudo boas coisas, não me interpretem mal), mas… menos Lisboa. E é isto que me preocupa. A venda da identidade urbana, com um investimento e revitalização a que falta coração. O risco é real: perder a alma. Ou, melhor dito, ir perdendo a alma, a retalho. Levanto-me e deixo de ouvir a conversa do vizinho. E, a passos largos para o Terreiro do Paço, já nem me lembro da bolha. Bolas, tenho que admitir. É uma cidade linda. Talvez devesse comprar casa …

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