Retalho

Retalho e logística: duas faces da mesma moeda

No mundo pós pandemia, o retalho e a logística relacionam-se cada vez mais profundamente, funcionando quase que como duas faces da mesma moeda. Um dos grandes dínamos desta ligação, o boom do e-commerce veio impactar profundamente a dinâmica das cadeias de distribuição, liderando a nova onda da procura de espaço logístico que se tem alastrado um pouco por toda a Europa.

Ana Tavares 22 Dezembro 2022

Portugal não é exceção, com o setor logístico a viver um momento sem precedentes tanto a nível da procura como do investimento, com a oferta a desenvolver esforços para qualificar e expandir o stock, criando um pipeline verdadeiramente sustentável e de qualidade superior.

Entretanto, a afirmação das vendas online veio também colocar em evidência a importância do retalho físico, calando definitivamente as vozes que até aqui vaticinavam o fim do centro comercial. Pelo contrário, veio sim, mostrar que o comércio físico e digital não devem ser encarados como concorrentes, mas sim como complementares; afetando a forma como lojistas e operadores passam a calcular o valor de uma loja, e fazendo da experiência sensorial e da conveniência da localização dois trunfos que podem e devem ser capitalizados ao máximo pelos proprietários dos shoppings.

Este encontro realizou-se a 6 de dezembro, no Hotel Real Palácio, em Lisboa
Este encontro realizou-se a 6 de dezembro, no Hotel Real Palácio, em Lisboa
Lojas físicas tornaram-se no "last mile" da operação logística das marcas

Com o crescimento do e-commerce, a loja física passou a estar integrada na rede de gestão logística das marcas, tornando-se o “last-mile” da distribuição. Um fenómeno que ganhou terreno com a pandemia e que veio colocar em evidência a importância dos centros comerciais, deitando por terra as vozes que vaticinavam o final deste formato de retalho.

A ideia ficou bem patente no encontro promovido pela Vida Imobiliária e a Cushman & Wakefield no passado dia 6 de dezembro, que reuniu à mesa os responsáveis da Sonae Sierra, Mundicenter, Nhood, Klepierre, Merlin Properties e Square AM para debater alguns dos temas estruturantes que dominam a agenda do setor.

«A pandemia foi um verdadeiro booster para o comércio online, que aumentou significativamente nos últimos dois anos, uma vez que muitas pessoas que até aí simplesmente não eram usuários se tornaram, e em que quem já recorria a este formato aumentou as suas compras por esta via. No entanto, entretanto também aumentámos bastante as vendas nos nossos centros comerciais e neste momento estamos em níveis de 2019», começou por dizer Fernando Oliveira, Executive Director da Mundicenter.

«Há alterações muito significativas na cadeia logística. A loja física no centro comercial, passou a assumir um novo papel ao ser integrada rede de distribuição do e-commerce, reforçando novamente a importância do shopping como um espaço e conveniência, tornando-se num local não só para as pessoas fazerem as suas compras, mas também para levantarem encomendas e fazer devoluções de produtos que compraram online, de forma eficaz. Em resultado, muitos operadores, especialmente marcas integradas em grandes cadeias, passaram a solicitar áreas maiores nos centros comerciais, pois agora têm de acautelar também as necessidades de espaço relativamente à logística das vendas online, além das habituais necessidades de armazenamento daquela loja específica», explica este responsável.

A par com esta componente mais logística, diz o responsável da Mundicenter, «os centros comerciais têm também outro papel importante para o sucesso do e-commerce, que se prende com a parte da experiência, pois muitos consumidores preferem deslocar-se à loja para tocar e experimentar o produto, acabando por comprar mais nessa presença ou, muitas das vezes, por concluir ali a compra, ainda que através de uma plataforma online. Portanto, há uma complementaridade entre o e-commerce e o comércio físico, e hoje os centros comerciais desempenham um novo papel quer na componente logística quer na componente da experiência; cabendo-nos a nós potenciar essa complementaridade entre ambos».

Fernando Oliveira, Executive-Director da Mundicenter
Fernando Oliveira, Executive-Director da Mundicenter
Quanto vale hoje uma loja?

Rui Vacas, Real Estate North Director da Nhood, não tem dúvidas que «com o e-commerce, o centro comercial deixou de ser aquilo que era antigamente. Ou seja, é um espaço que já não depende unicamente da venda física, e cujas lojas têm uma componente muito variável devido à popularidade das vendas online».

«O e-commerce trouxe grandes desafios para os retalhistas, sobretudo ao nível da estrutura de custos e da promessa de entregas rápidas, em 24 horas» e, portanto, «a integração das lojas na operação logística das marcas é inevitável, mesmo na gestão de stock. A loja tornou-se parte do e-commerce, é o próprio last-mile», afirmou Telmo Ferreira, Head of Country na Klépierre Management Portugal.

Até porque, como realçou João Cristina, Country Manager da Merlin em Portugal, «não é sustentável que todas as entregas do e-commerce sejam realizadas porta a porta. Além da questão dos custos, que são muito superiores nesse modelo, os lojistas estão também a descobrir que ao “obrigarem” as pessoas a levantar e trocar encomendas em loja, também estão a aumentar a probabilidade de o consumidor aumentar o seu gasto, fazendo compras adicionais no local, pelo que as lojas serão sempre beneficiadas».

Neste sentido, defende Telmo Ferreira, «o confronto entre o comércio online e físico não faz sentido, que existe é uma complementaridade entre ambos. E o maior desafio que temos a percorrer é no final do dia saber quanto é que a loja vale no seu todo, e não apenas quanto faturou através das vendas físicas. Só podemos ter uma gestão eficiente conhecendo a totalidade do negócio das marcas, percecionando-o como um todo, percebendo por exemplo de que forma é que as marcas processam os reenvios de artigos de uma loja para outra, de forma a gerir todas estas mudanças da forma mais eficiente e proveitosa possível, repartindo os custos e ganhos de forma equilibrada entre os diferentes operadores. Só tomando consciência do negócio no seu todo é que poderemos tomar boas decisões», mas nesse processo, «terão de ser feitas cedências quer do lado dos proprietários quer do lado dos retalhistas para chegar a um consenso» sobre os novos modelos de negócio e exploração das lojas.

«O modelo “one size fits all” não se aplica, cada operador terá de ter consciência do que a sua loja vale no conjunto do seu negócio», concorda Cristina Moreira dos Santos, Executive Director Property Management da Sonae Sierra e Chairwoman da APCC – Associação Portuguesa dos Centros Comerciais. E este terá de ser o pressuposto para o processo de negociação entre lojistas e gest ores.

Ou seja, «embora estejamos muito viciados a pensar em taxas de esforço, temos novas formas de medir os resultados das lojas e, já não pode ser só quantificando a componente física», acrescenta Rui Vacas, defendendo que «cada vez mais, esta será uma questão premente» para cálculo das rendas.

Pedro Coelho, Vice-Chairman da Square AM
Pedro Coelho, Vice-Chairman da Square AM
O e-commerce empoderou o consumidor

João Cristina reparou que «até ao advento do e-commerce, a estratégia das marcas era completamente oposta do que é hoje. Antes dominava uma estratégia push, em que as marcas é que “empurravam” para as massas os produtos que queriam vender, através de publicidade e marketing. Hoje, com a internet a realidade é quase a oposta e é o consumidor que define o que quer e quando quer, o que veio alterar completamente a dinâmica da cadeia de distribuição, colocando-lhe enormes disrupções, como por exemplo pelo facto de obrigar a enormes capacidades de aprovisionamento de stock, fazendo com que em contrapartida a procura de área logística tenha vindo a subir exponencialmente». Na era da informação, outra questão que tem vindo a emergir é que «com a experiência digital do e-commerce, os retalhistas conseguem canalizar muita informação valiosa sobre os hábitos de consumo dos seus clientes e antecipar o que o consumidor quer ou precisa, levando a que muitas marcas estejam a perder terreno para as grandes plataformas de venda online», notou o responsável da Merlin em Portugal, concluindo que «o grande desafio atual dos retalhistas físicos é o de abraçar esta omnicanalidade, adaptando-se a essa nova dinâmica e antecipando as necessidades do consumidor».

«O hábito de as pessoas se deslocarem à loja ou ao shopping apenas para uma compra rápida está a desaparecer. Hoje, as pessoas demoram-se mais nas lojas e sentem-se mais conhecidas pela marca, querendo um tratamento mais personalizado», acrescentou Sandra Campos, Head of Retail da Cushman & Wakefield. «Hoje o consumidor é quem manda», diz, defendendo que «a dicotomia entre o comércio online e físico já nem se deveria discutir, mas sim estar mais integrada», pois o movimento da omnicanalidade tem dois sentidos, havendo «também retalhistas que até aqui tinham uma presença exclusivamente online e que, entretanto, abriram lojas físicas».

Rui Vacas, Real Estate North Director da Nhood
Rui Vacas, Real Estate North Director da Nhood
Tudo muda no centro comercial, menos a localização e conveniência

«Nos centros comerciais a conveniência da localização é o que mais interessa. Claro que também temos de ter um tenant-mix equilibrado e adequado, mas também isso vai evoluindo em função daquelas que são as mudanças normais na sociedade. Por isso, o que conta sempre é a localização e a conveniência daquele espaço, se tem estacionamento, como é a limpeza, a proximidade aos transportes, e por aí», comenta Pedro Coelho, Vice-Chairman da Square AM.

Com isso em vista, adiantou, «temos vindo a desenvolver um trabalho, em conjunto com a Sonae, com vista ao reposicionamento dos nossos centros comerciais, de modo a adequá-los às aspirações e necessidades dos clientes de hoje», explicou o responsável da Square, cuja carteira de shoppings está hoje avaliada em cerca de 250 milhões de euros, ou seja, 20% do valor total do portfólio sob gestão.

Cristina Moreira dos Santos, garante que «o regresso da pandemia tem sido surpreendentemente bom» para o mercado português, com os centros comerciais a registar níveis de vendas acima de 2019. «O Covid mostrou a enorme resiliência dos ativos, que souberam adaptar-se com grande rapidez a todas estas mudanças», e «a aceleração do e-commerce foi tal, que acabou por colocar ainda mais em evidência a importância das lojas físicas», levando a que «como operadores, estejamos hoje muito mais sossegados do que estávamos antes da pandemia em relação à concorrência do online».

Telmo Ferreira, Head of Country Klépierre Management Portugal
Telmo Ferreira, Head of Country Klépierre Management Portugal
Inflação, taxas de juro e guerra na Europa trazem incerteza para 2023

Fazendo um balanço claramente positivo deste último ano, estes especialistas mostram-se, contudo, bem mais contidos nas suas perspetivas para os próximos meses. «A única certeza é a incerteza que temos pela frente», resumiu Fernando Oliveira, lembrando que atual cenário inflacionista e de subida de taxas de juro vem comprometer o rendimento disponível dos portugueses e isso, inevitavelmente, irá repercutir-se no consumo. «No entanto, também é preciso lembrar que a taxa de desemprego em Portugal é baixíssima e que o turismo se mantém muito dinâmico», que são fatores que contrabalançam os anteriores.

«Realisticamente, não temos dúvida que em 2023 teremos um exercício inferior ao registado em 2022, mas não podemos avançar em que medida. Será mesmo um ano de navegação à vista, em que teremos de ter capacidade de tomar decisões equilibradas para ajudar os nossos parceiros a ultrapassar os desafios que nos esperam, nomeadamente no apoio aos lojistas», conclui.

Já Telmo Ferreira não tem dúvidas que «a tendência de aumento do consumo em 2022 é claramente um reflexo da pandemia, pelo que não teremos um 2023 igual». Lembrando que «muitas famílias não têm ainda crédito hipotecário atualizado em função da subida das taxas de juro», Rui Vacas acredita que «o impacto do aumento do juro no pagamento das hipotecas será dantesco, pois o rendimento disponível das famílias será canalizado para pagar a prestação da casa ao banco», pelo que «o segundo semestre de 2023 vai ser muito difícil, com contração – senão decréscimo – das vendas».

Em contrapartida, Cristina Moreira dos Santos partilha de «um otimismo moderado, de que o futuro está no bom caminho apesar de podermos a vir a ter um semestre mais desafiador em 2023». E, a razão é porque «a resiliência deste setor e a sua capacidade de adaptação à adversidade e mudança ficou bem comprada nestes últimos anos. Claro que 2023 trará muitos desafios, mas acho que com proatividade e capacidade de gestão iremos ajudar o setor a ultrapassar mais esses obstáculos», conclui.

João Cristina, Country Manager da Merlin Portugal
João Cristina, Country Manager da Merlin Portugal